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Bolsonaro preso ou ficha-suja é improvável por crimes apontados pela CPI da Covid

“[Quero] dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”, disse o presidente Jair Bolsonaro em discurso na avenida Paulista nos atos de raiz golpista do 7 de Setembro deste ano.

No relatório final da CPI da Covid, a ser votado nesta terça-feira (26), nove crimes foram atribuídos ao presidente da República.

Desses, sete são crimes comuns, previstos no Código Penal e com pena de prisão. O parecer aponta ainda que Bolsonaro teria cometido crime de responsabilidade, da Lei de Impeachment, e crime contra a humanidade, do Estatuto de Roma.

As chances, contudo, de que Bolsonaro seja preso pelos crimes apontados no documento, ainda que sofra condenações, ou até de que se torne inelegível em um futuro próximo por causa delas são baixas.

Desde o início da disseminação do novo coronavírus, no começo de 2020, Bolsonaro sempre falou e agiu em confronto com as medidas de proteção, em especial a política de isolamento da população. Ele já usou as palavras histeria e fantasia para classificar a reação da população e da imprensa à pandemia.

Bolsonaro também distribuiu remédios ineficazes contra a doença, incentivou aglomerações, atuou contra a compra de vacinas, segue espalhando informações falsas sobre a Covid e fez campanhas de desobediência a medidas de proteção, como o uso de máscaras.

Apesar das evidências de omissão, não necessariamente o direito penal alcançará tais condutas.

A CPI do Senado não pode denunciar, julgar ou punir ninguém. O relatório traz apenas as conclusões das investigações e sugestões, cabendo às autoridades competentes dar seguimento aos casos.

No plano dos crimes comuns, o primeiro obstáculo para uma possível responsabilização do presidente é o procurador-geral da República, posto atualmente ocupado por Augusto Aras, que tem preservado Bolsonaro e é a única autoridade que pode denunciá-lo.

Mesmo considerando um cenário hipotético em que Aras apresente uma denúncia contra o mandatário e que ela seja aceita pela Câmara dos Deputados -o que abriria caminho para que Bolsonaro fosse julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), há outros fatores que tornam uma prisão improvável.

Dos crimes apontados pela CPI e que seriam julgados pelo Judiciário brasileiro, o único que, sozinho, poderia ter como consequência o cumprimento da pena em regime fechado -quando a pena é superior a oito anos- é o crime de epidemia com resultado de morte.

Entre os demais crimes comuns elencados, com exceção do crime de falsificação de documento particular (cuja pena varia de um a cinco anos), as punições máximas não passam de um ano.

Excluindo o crime de epidemia, portanto, uma eventual prisão ocorreria apenas no caso de haver condenação por mais de um crime, de modo que a somatória de penas fosse superior a oito anos.

Com pena de prisão de 10 a 15 anos, que pode ser duplicada quando há morte, o crime de epidemia foi atribuído não só a Bolsonaro mas a outras autoridades, como o general e ex-ministro Eduardo Pazuello (Saúde).

De acordo com o artigo 267 do Código Penal, é crime “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.

Apesar de haver especialistas que defendem que as ações e omissões de Bolsonaro poderiam ser enquadradas em tal tipo penal, sua aplicação envolveria interpretações mais controversas dentro do direito e dependeria, portanto, da disposição do Judiciário em tomar uma decisão com alto custo político.

Em fevereiro, a PGR arquivou uma representação formulada por ex-procuradores que apontava o mesmo crime –a aplicação do tipo penal, segundo a Procuradoria, dependeria da possibilidade de se encontrar e punir a pessoa que deu origem à pandemia.

A conclusão de que o presidente teria cometido tal crime foi apontada em parecer enviado à CPI por um grupo de especialistas liderado por Miguel Reale Junior, ex-ministro da Justiça do governo FHC e um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

A advogada e professora de direito penal da USP Helena Regina Lobo da Costa, que integrou o grupo, defende a interpretação mais ampla do artigo.

“Essa ideia de que causar epidemia é só dar a origem inicial, digamos assim, isso está errado. Se eu contribuo de forma relevante para o agravamento da situação causal, eu posso responder, sim, pelo crime.”

Já a advogada criminalista Marina Coelho de Araújo, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), discorda dessa interpretação.

“Para mim, isso é uma ampliação do tipo penal, e o direito penal tem uma questão que a gente precisa interpretar os crimes de forma restritiva”, diz. “O tipo penal é bem claro: você tem que causar a epidemia, não é aumentar.”

No parecer de Reale à CPI da Covid, a aplicação do crime de causar poluição é apontado como exemplo de jurisprudência de que para incidir no tipo penal não seria necessário dar origem ao fato, mas simplesmente atuar de modo a agravá-lo.

O argumento foi incorporado no relatório da CPI apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL).

Francisco Monteiro Rocha, advogado e professor de direito penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná), critica o uso do crime de poluição na argumentação.

“Existem inúmeras críticas dizendo que esse artigo é excessivamente amplo, que você não consegue chegar a uma segurança jurídica”, diz. “Fazer um paralelo com um artigo que recebe inúmeras críticas, eu não vejo como um caminho muito defensável, muito razoável.”

Para Rocha, considerando que a pena da modalidade dolosa do crime é bastante alta, o Judiciário será bastante cauteloso ao avaliar os requisitos para uma condenação. O professor da UFPR avalia também que a condenação na modalidade culposa, ou seja, sem intenção, seria mais viável.

Enquanto a pena para o crime de epidemia com resultado de morte é 20 a 30 anos na modalidade dolosa, na forma culposa ele cai para 2 a 4 anos.

Segundo o relatório da CPI, Bolsonaro atuou de forma dolosa.

O documento diz que é importante registrar que “o presidente da República atuou com dolo eventual, na medida em que assumiu o risco das mortes de milhares de brasileiros ao recusar ou retardar a compra das vacinas que lhe foram insistentemente ofertadas”.

A professora de direito penal da FGV Raquel Scalcon considera que a chance de o presidente ser eventualmente condenado por crimes contra a administração pública é maior do que em relação ao crime de epidemia.

Segundo ela, haveria um certo constrangimento do Judiciário, em especial em instâncias superiores, em condená-lo por tal crime. Scalcon ressalta contudo que o contexto político é um fator a ser levado em consideração.

“Acho que vai ser uma decisão muito mais política do que jurídica, vai depender muito do que vai acontecer nas eleições também, do clima, da polarização do país”, avalia. “Quanto mais desprotegido ele [Bolsonaro] estiver, mais fácil será o Judiciário imputar e aceitar essa imputação”, diz.

No caso de Aras decidir arquivar as representações relacionadas à CPI, uma denúncia à primeira instância, depois de Bolsonaro deixar o cargo, dependeria do surgimento de novos elementos.

Um segundo efeito que eventuais condenações criminais em segunda instância podem ter para Bolsonaro seria torná-lo inelegível, com base na Lei da Ficha Limpa. No entanto, entre os crimes comuns apontados pela CPI, apenas os crimes de epidemia e o crime de falsificação de documentos entrariam neste rol.

“Para os demais crimes listados no relatório a regra de inelegibilidade não se aplica por serem considerados de baixo potencial ofensivo”, explica Carla Nicolini, advogada eleitoral e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

Ela avalia contudo que o relatório da CPI terá o desgaste político como repercussão mais provável do que em condenação na esfera penal.

Outro caminho que poderia resultar em inelegibilidade seria o andamento de denúncia por crime de responsabilidade na Câmara dos Deputados, abrindo um processo de impeachment contra Bolsonaro.

Neste caso, entretanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é a primeira pedra no caminho daqueles que desejam ver Bolsonaro fora do cargo.

Para além dos crimes comuns e do crime de responsabilidade, o relatório da CPI atribui também a Bolsonaro a prática de crime contra a humanidade. Previsto no Estatuto de Roma, que foi reconhecido pela legislação brasileira, tal crime é julgado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia.

Entre especialistas, há divergências não só quanto às chances de Bolsonaro vir a ser condenado por crime contra a humanidade, mas também quanto a se o TPI abriria uma investigação contra o presidente.

Para tanto, a corte internacional avalia se o suposto crime é de fato de sua competência, se há omissão das autoridades nacionais em investigá-lo e se ele tem gravidade suficiente.

Mesmo que o TPI decida abrir uma investigação, o processo seria longo e uma eventual condenação poderia levar anos. Apenas essa fase preliminar de análise dura pelo menos um ano.

No limite, uma condenação de Bolsonaro por crime contra a humanidade poderia levar a uma pena de prisão de até 30 anos e também em inelegibilidade.

De acordo com o advogado especializado em direito eleitoral Marcelo Andrade, apesar de os crimes contra a humanidade não estarem previstos na Lei da Ficha Limpa, a depender da modalidade em que houvesse uma eventual condenação, Bolsonaro poderia ser enquadrado como ficha suja, pois uma das hipóteses previstas são os crimes contra a vida.

“Consigo antever que o crime de extermínio, por exemplo, é um tipo de crime contra a vida e, por isso, pode gerar inelegibilidade”, afirma Andrade.

PRISÃO

Prisão em regime fechado ocorreria apenas no caso de haver condenação, por um ou mais crimes, de modo que a pena total seja superior a oito anos. Entre os crimes comuns listados contra Bolsonaro, maioria tem pena máxima de até um ano

Os únicos ilícitos listados pela CPI e que, sozinhos, poderiam resultar na prisão de Bolsonaro seriam o crime de epidemia, na modalidade dolosa, e o crime contra a humanidade. A possibilidade de que ele seja condenado por esses crimes, contudo, é mais controversa.

CÓDIGO PENAL

Crime de epidemia com resultado de morte: reclusão, de 20 a 30 anos Falsificação de documento particular: reclusão, de um a cinco anos, e multa Infração de medida sanitária preventiva: detenção, de um mês a um ano, e multa Charlatanismo: detenção, de três meses a um ano, e multa Prevaricação: detenção, de três meses a um ano, e multa Emprego irregular de verbas públicas: detenção, de um a três meses, ou multa Incitação ao crime: detenção, de três a seis meses, ou multa ESTATUTO DE ROMA.

Crime contra a humanidade: prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos FICHA-SUJA.

A Lei da Ficha Limpa traz um rol de crimes cuja condenação em segunda instância ou por órgão colegiado fazem do candidato ficha-suja.

Crimes comuns: entre os sete crimes do Código Penal apontados pela CPI contra Bolsonaro apenas dois poderiam ter como efeito o enquadramento na Lei da Ficha Limpa, o crime de epidemia e o crime de falsificação de documentos particulares. Aos demais a regra não se aplica por terem pena inferior a dois anos.

Crime contra a humanidade: apesar de os crimes contra a humanidade não estarem previstos na Lei da Ficha Limpa, em tese, eles podem ter também a inelegibilidade como efeito, ao serem entendidos, por exemplo, como crime contra a vida.

Crime de responsabilidade: junto do impeachment pode ser aplicada uma pena acessória de inabilitação para o exercício de cargos públicos, equivalente à inelegibilidade.

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