Santos é o Senhor

Seu Nelson era um homem bom. Pai de família, trabalhador, responsável e cumpridor de suas obrigações e deveres. Definitivamente, como os antigos diziam, um homem de reputação ilibada. Sua boa reputação refletia muito bem em todas as faces de sua vida, e foi fator decisivo para que ele fosse escolhido unanimemente como pastor titular da igreja que frequentava. Porém, seu Nelson tinha um defeito. Na verdade vários defeitos, mas havia apenas um que poderia prejudicá-lo seriamente, e inclusive prejudicar o seu serviço como pastor protestante: Seu Nelson era torcedor fanático do Santos Futebol Clube! Não perdia um jogo por nada e, pelo menos uma vez ao ano ele fazia  uma “peregrinação”, saindo de São Paulo para visitar o glorioso estádio da Vila Belmiro em Santos a fim de assistir a um jogo de seu amado e querido “Peixe”. Ele viveu assim dividindo suas atenções entre a Santa Igreja e o amado Santos por exatos vinte anos, até que certo dia ele decidiu se aposentar do serviço pastoral.

O que ele não esperava e nem imaginava, é que o culto em homenagem a ele e a cerimônia de posse do novo pastor seriam exatamente no mesmo dia da final do campeonato paulista de 2006 entre o Santos e a Portuguesa. Há anos o Santos não ganhava um título Paulista e esse era o momento que ele tanto esperara… Infelizmente ele estava diante de um drama moral, semelhante ao de Abraão quando Deus ordenou que este sacrificasse seu filho Isaque… Apesar disso, seu Nelson não se fez de vítima, e nem pensou em sacrificar alguém.

No domingo do jogo ele desceu secretamente e convicto para assistir ao menos o primeiro tempo do jogo. Afinal, era coisa rápida, o jogo começava às 16:00, terminava às 18:00, o culto começava às 19:00, talvez até desse até para assistir metade do segundo tempo. Em seu raciocínio ele imaginava que chegaria levemente atrasado, mas tudo bem, há vinte anos pastoreando, ele conhecia os rituais de cor e salteado e sabia que um culto tão importante jamais começaria no horário…

Naquela tarde em São Paulo, sua família já estava desesperada com o sumiço do Patriarca. Todos pensavam que teria ocorrido o pior, afinal seu Nelson nunca perdeu um jogo do Santos, que dirá uma final! Chegaram a pensar na hipótese de que o pastor tivesse viajado para Santos, mas não, ele não se arriscaria a perder o culto em que seria homenageado por vinte anos de serviços tão bem prestados… De repente, um de seus filhos que assistia ao fim do jogo começou a gritar: “Mãe, vem ver, olha o pai na TV!” – Eis que todos, no Brasil inteiro viam seu Nelson, em close, chorando cântaros d’água, repleto de alegria, tendo a voz do narrador ao fundo: “Ehhhhhhhhhh, essa é a cara do torcedor santista, FFFFFFFFFelizzzzzzzzzzzzzzz da vida com a vitória do Peixe… O grito de campeão entalado na garganta…”.

Em seguida, a pobre família abismada recebe a ligação de um importante conselheiro da igreja dizendo: “Ainda bem que hoje é a aposentadoria do seu Nelson… Senão teríamos que providenciá-la…”

Naquela noite, seu Nelson conseguiu chegar a tempo para o culto solene. E fez um dos melhores sermões que já ouvi – Falou sobre Davi e Golias, para uma plateia de mais de 500 almas abismadas por não acreditarem que o torcedor daquela tarde e o pastor daquela noite eram a mesma pessoa. No fim do culto, eu não resisti e perguntei:
– “Pai, porque pregar sobre Davi e Golias? O Santos jogou muito melhor que a Portuguesa…” (ele adorava fazer sermões simbólicos com assuntos cotidianos!).

– O Davi era eu meu filho…

– E o Golias, quem era?

– A aposentadoria, meu filho, a aposentadoria…

Para quem não sabe, Davi tinha um pouco mais de um metro e meio e Golias um pouco menos de três… Davi matou Golias com uma pedrada bem no meio da testa após ele zombar de Davi… Para bom entendedor, meia palavra basta…