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“Acredito que o afeto seja a peça fundamental para que tenhamos uma humanidade melhor”

A psicóloga Renata de Castro Ferreira, 48 anos, tem um lema que a define “sou uma curiosa pela vida e pelo ser humano, em vistas de aprender para contribuir”.  Na entrevista de hoje ela fala sobre seu percurso clínico e projeções para o futuro, no quesito Saúde Mental.

Também conta de sua fascinante e inspiradora experiência na África, pela qual nos presenteia com o conceito da ‘capulana’, uma peça de tecido daquela cultura que entrelaça simbólico e real na prática da maternagem, coisa que, aliás, Renata de Castro entende bem: é mãe de 8 filhos, entre biológicos e adotivos, seguindo o exemplo da Chácara Sorriso, dirigida pelos seus sogros Luiz Carlos Ferreira e Conceição Aparecida Ferreira, um local que já acolheu quase 500 crianças em adoção.

Leia o que ela tem a nos dizer, mas, sobretudo, leia suas entrelinhas acerca de empatia e humanização.

Folha de Franca – Como a Psicologia chegou à sua vida? Como foi seu percurso na profissão?

Renata de Castro – Costumo dizer que estava vagando entre o que queria e o que precisava e a Psicologia me encontrou, segurou na minha mão e me conduziu pelo caminho. Meu encontro com a Psicologia aconteceu quando uma amiga que trabalhou comigo e na época cursava Psicologia, me mostrava as apostilas e narrava um pouco o que estava aprendendo; em uma dessas conversas me falou da Psicologia Social, Educacional entre outras, que me despertaram o interesse. Os cinco anos de estudo, posso dizer que foram uma grande aventura para conciliar faculdade, trabalho, casa, filhos e marido. No terceiro ano de faculdade pensei em desistir, então lembrei que já havia iniciado uma subida a esta montanha, que o cume era a conclusão do curso, e, como numa escalada, a  montanha que se apresentava bem difícil, cheia de desafios e descobertas, se eu resolvesse desistir, provavelmente seria a mesma distância do topo, então resolvi continuar essa subida.  Fiz todos os estágios possíveis e impossíveis também, e cheguei com muito orgulho ao topo, casei com esta profissão belíssima que me orgulha tanto! Logo após o término da faculdade, eu e três amigas iniciamos as atividades no consultório, que a ratificação do que eu realmente amava; encontrei meu lugar no mundo! Aprendi muito com meus pacientes e me fiz aluna muitas vezes,  descobri que juntos realmente vamos mais longe! Outras oportunidades de trabalho foram surgindo e contribuindo com minha formação acadêmica (medida sócio educativa e orientação vocacional). Os desafios, foram inúmeros, mas as oportunidades foram bem maiores… preferi focar no que podia dar certo e deu! E com certeza o apoio do meu esposo e dos meus filhos foi fundamental para que eu conseguisse iniciar minha vida profissional dentro da Psicologia!

Folha de Franca – Quais são as suas influências em termos teóricos e culturais?

Renata de Castro – Meu direcionamento se encontra na abordagem Fenomenológica Existencial, entre o ser humano e a liberdade; hoje tenho revisitado a abordagem centrada na pessoa de Carl Rogers, uma paixão antiga de faculdade, que me impressiona pelo cuidado com o hoje e principalmente seu olhar humano para o outro; neste caminho de conhecimento me deparei com nosso contemporâneo Zygmunt Bauman, que dentro do universo filosófico e cultural, me inquieta, me provoca e me faz pensar diariamente sobre as questões do ser humano e sua inquietude diante da necessidade de liberdade e segurança! Essas questões se esbarram todos os dias no consultório, diálogos quase intermináveis sobre o viver humano e suas possibilidades! Venho também estudando e colocando em prática com grupo de pais e educadores sobre a importância da afetividade para o desenvolvimento humano, e principalmente para a aprendizagem. Neste importante e relevante tema, tenho revisitado Henri Wallon, Lev Vygotsky, Jean Piaget e Winnicott.

Folha de Franca – E como é a rotina clínica de um psicólogo?

Renata de Castro – No consultório hoje tenho recebido muitas crianças, adolescentes e suas famílias, diante deste cenário da pandemia e suas implicações emocionais. A orientação às famílias ao longo desses anos tem ocorrido de forma sistêmica, para contribuir na melhoria do diálogo e principalmente no reconhecimento dos sentimentos que movem as ações. Costumo brincar com os pais, que poderíamos ter um manual de ‘como educar o filho de 0 a 100 anos’; na verdade o desejo de muitos seria sair do hospital com o manual em uma das mãos, porém não é assim que acontece, aprendemos a ser pais na vida e com a vida, e sabemos que pode não ser fácil, mas é possível. Dentro desta narrativa meu papel é apoiar a família, acolher e permear esse caminho de novas possibilidades, trazendo pais e filhos a novas reflexões. O pensar sobre o presente, suas novas ações para a vida, e a compreensão da própria história são cotidianas no consultório. A questão do ser humano enquanto ser em potencial me encanta e contribui para minha condição de escuta e parceria neste caminho de se conhecer e reconhecer que é o processo terapêutico. Hoje também atuo como psicóloga educacional em uma creche, no acompanhamento das educadoras, crianças e famílias, trabalhando nesta realidade a afetividade, como princípio norteador de proteção e segurança. Acredito que o afeto é a peça fundamental para que tenhamos uma humanidade melhor, e para isto iniciamos com a base da vida, as crianças. São elas que irão dar continuidade e podem contribuir com a construção de um mundo melhor. Raffi Cavoukian no documentário ‘O Começo da Vida’ de Stela Renner, conta que “se mudarmos o começo da história, mudamos a história toda”, eu acredito neste pensamento. A primeira infância tem esta possibilidade! Então, tenho me debruçado sobre esta perspectiva e neste segmento tão importante e relevante para a sociedade.

Folha de Franca – O que você observa, a partir da clínica, em relação ao sofrimento psíquico nos últimos anos?

Renata de Castro – Com relação ao sofrimento psíquico, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retrata que a quantidade de casos de depressão no Brasil cresceu 18% em dez anos, lembrando que nosso país foi campeão de registros na América Latina. Hoje com as mídias sociais, a informação chega muito fácil, tudo muito acelerado, dando a impressão de que precisamos saber de tudo e de todos ao mesmo tempo, sem filtro. A ansiedade, então, tem se mostrado cruel e avassaladora em muitos casos. As crianças e os adolescentes por sua vez, estão cada dia mais entranhados nesta realidade, sendo por vezes vítimas deste contexto sem limites, gerando adoecimento psíquico.

Folha de Franca – Você considera a possibilidade do diálogo entre as correntes teóricas interessantes na prática clínica?

Renata de Castro – Acredito que as correntes teóricas, mesmo tendo caminhos diferentes, têm o mesmo propósito em si, de nortear e cuidar da pessoa na resolução de seus conflitos, possibilitando um olhar para o presente em vistas de um futuro melhor, para que o sujeito possa então ressignificar sua própria história. Nesta perspectiva, entendo que se possível e de forma acertada, seja viável um diálogo dentro da prática clínica, uma ‘conversação’ importante que visa somente ao bem daquele que nos é importante: o ser que se encontra aos nossos cuidados. Penso a Psicologia como uma linda orquestra, cada instrumento representa as diversas abordagens, suas peculiaridades e possibilidades de atuação, o arranjo musical depende da harmonia, o respeito e atuação de cada um neste concerto, pois a intenção é produzir e reproduzir dentro do seu instrumento, o som necessário para que o concerto aconteça, a música se faça ouvir… assim vejo a atuação clínica e suas possibilidades! Então em alguns casos, penso que esse diálogo se faz necessário.

Folha de Franca – O que a clínica psicológica acena, para a atualidade e um futuro próximo?      

Renata de Castro – Conforme apontava a OMS em 2018, até o ano de 2020 a depressão seria a doença mental mais incapacitante do planeta. Com a pandemia, essa situação foi ampliada, o sofrer humano se escancarou neste cenário, amplificando o adoecimento. Outro ponto importante foi entender que a ansiedade se tornou ainda mais visível e ameaçadora, agora atingindo todas as idades. Pelos relatos de alguns colegas de profissão, percebemos uma grande procura por acompanhamento psicológico nos consultórios particulares, sem falar pessoas que aguardam em filas de espera por atendimento particular e público. Acredito que a psicologia tem um papel essencial, diante desta situação, na atenção a esta problemática e apoio a esta população cada dia mais angustiada e sedenta por respostas. Penso que precisamos ter mais políticas públicas que atendam esta realidade e promovam a aproximação da psicologia a toda a população que necessite, de uma forma mais assertiva e efetiva.

Folha de Franca – Conte sobre a sua experiência na África, explique sobre a ‘capulana’.

Renata de Castro – Aí meu coração aperta! A África sempre esteve em meu coração, Deus me presenteou com este acontecimento, conhecer uma localidade em Moçambique! Eu e uma amiga fomos convidadas a fazer parte de uma pesquisa de campo, para iniciar um projeto missionário do Regional Sul 1 da Igreja Católica, entre o Estado de SP e a cidade de Pemba, capital da Província de Cabo Delgado, em Moçambique. O convite foi feito após o apelo do bispo brasileiro em Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa, diante das dificuldades de sua região.

Este foi o início de uma das minhas maiores alegrias, só não posso dizer realização, pois não finquei minha tenda em solo africano (esse era meu desejo). Foram 30 dias muito intensos, de muitas visitas, anotações, perguntas e de muita energia. Este meu povo me ensinou tanto em 30 dias que não descobri em 40 anos de existência! Aprendi que a força da mulher africana vai além dos braços, e que as crianças têm o poder de transformar o sofrimento em acolhida, a fome em partilha, a alegria em festa. Recebi abraços maravilhosos, com tanta afetividade e vontade da minha presença! Me senti acolhida e entendi que o povo africano é coragem e resiliência.

Algo que sempre me alegrava os olhos, nas andanças neste solo moçambicano além do povo, eram as vestimentas de homens e mulheres, a vibração das cores e o gingado pelas ruas. Este tecido que sempre permeou meus pensamentos, mesmo em solo brasileiro, era a capulana.

A capulana, tradicionalmente, é usada pelas mulheres como vestimenta, tanto no corpo (vestido ou saia) como sobre a cabeça (turbante), o seu uso vai além da vestimenta, pois é utilizado principalmente para carregar as crianças ao corpo. Essa foi uma das minhas maiores descobertas… esse aconchego que a capulana produz que afeta intimamente as crianças e as torna seguras, pois este lugar produz pessoas resistentes. O próprio tecido reproduz alegria e força!

A capulana me fez pensar sobre o objeto de apego ou objetos transicionais, que podem ser um brinquedo, um ursinho de pelúcia, um cobertor, uma toalhinha ou qualquer outro objeto que faça tanto sentido, muito importantes para o desenvolvimento emocional da criança.

Quando olhava para as mães, levando suas crianças na capulana, buscava atenção principalmente para a criança, que estava sempre aninhada, ora na frente junto ao seio, ora nas costas para que a mãe pudesse ter os braços livres para trabalhar, mas sempre junto a mãe!

Pensei no tanto que a capulana aproximava, unia, acalentava e produzia afeto. Este simples tecido tinha o poder de aninhar, de proteger, de acalmar, de ensinar, de fortalecer o vínculo familiar, pois os irmãos e alguns pais também realizam a mesma prática, colocar a criança junto a seu corpo com a capulana.

Diante de tanto sofrimento, miséria, fome, guerras, os moçambicanos seguem sorrindo e com os braços sempre estendidos. Acredito que este povo se fortaleceu e sobreviveu a tantas problemáticas devido a esta passagem pela capulana, pois foram amparados e protegidos. Ao dar lugar a outra criança, descem da capulana mais seguros.

Essa experiência junto aos meus irmãos moçambicanos me fez compreender que o afeto é o bem maior que podemos produzir e oferecer aos nossos filhos, as nossas crianças. A capulana me fez ainda mais curiosa neste universo do afeto, me fez adentrar ainda mais nesta reflexão e expandir este conhecimento.

Folha de Franca – Fale sobre sua experiência familiar com adoção de crianças, a partir da iniciativa dos seus sogros, com a Chácara Sorriso.

Renata de Castro- Minha família é meu alicerce, ali aprendo todo dia a ser melhor! Estou casada há 28 anos, eu e meu esposo desde que nos conhecemos ele dizia que queria ter 10 filhos, imagina só esse desejo. Nós nos casamos e depois de 4 anos nasceu nosso primeiro filho, 2 anos depois o segundo, e depois de um ano chegaram nossos quatro filhos, por meio da adoção, então, éramos oito! Depois de 5 anos chegou nossa pequena que hoje tem 16 anos, e depois minha afilhada que hoje tem 13 anos, então agora posso dizer que sou uma mãe de 8 filhos. Imagina só essa turma, essa confusão, esse nascer de uma família. Acredito que toda essa inspiração de vida nasceu também pela convivência com meus sogros que na época eram família de apoio e já haviam acolhido e adotado várias crianças e adolescentes. Depois de um tempo a casa deles ficou pequena, ganharam uma chácara para que pudessem ter espaço adequado e pudessem realizar a missão deles de ser família para quem ali chegasse, estou falando da Chácara Sorriso.

Meus filhos viveram esse lugar, viveram essa realidade e acredito que hoje essa experiência, essa vivência os fortaleceram e principalmente os ensinaram a serem mais acolhedores e humanos.

Essa escolha só foi possível porque tanto eu quanto meu marido escolhemos viver essa história que só nos tem dado respostas positivas, de que fizemos o que tinha que ser feito, e que se pudéssemos fazer de novo com certeza faríamos, lógico com algumas melhorias que a vida nos proporcionou.

Hoje temos um genro, uma neta (nosso coração fora do peito) e três noras, a família sempre aumentando… ainda temos solteiros na família!

Aprendi que a vida pode ser partilhada, que o amor pode se multiplicar e isso fez toda diferença na minha vida pessoal, familiar e profissional.

Vanessa Maranha

É Psicóloga, Jornalista, Escritora Premiada, colunista da FF.

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