Inspirados

Apóstolo da Educação

Fazia eu sessenta anos de idade.

Eram 22h38.

O Zapzap emitia som insistente de chegada de novas mensagens na caixa.

Caramba. Nem parabéns me dava!

[22:38, 25/03/2020] Marcial: Boa noite dr Théo, tudo bem?

[22:39, 25/03/2020] Marcial: Saudades da boa conversa com o amigo.

Meu Deus! Isso foi no ano passado.

A pandemia estava apenas começando a sua carnificina, como um exército chinês de Lázaros.

Medo e pavor para todos os credos e tantas cruzes.

Literalmente, em situação de quarentena, dizíamos que não dava para brincar com o coronavírus.

A campanha negacionista e do efeito rebanho – desde que fosse com as ovelhas dos outros criadores! – já tomava vulto.  Vacina atendia por VaChina.

O Professor de História, com letras maiúsculas mesmo, dava-se ao magistério como a mãe entrega-se aos seus filhos. Tempo integral.

A política corria em suas veias, em seu sangue vermelho de socialista, plasmado por glóbulos brancos do diálogo fácil e sensato dos democratas convictos. Liderava conversando, articulava comandando.

No campo espiritual, via-se às voltas com as dúvidas. Via-se. Entenderá o leitor o porquê.

É que determinados filósofos e intelectuais se dão o direito de duvidar toda a vida, desavisados de que a vida não é disponível a cada um por sua finitude infinita.

Com o seu atávico cavalheirismo, respeitava e se consentia ressaltar a minha religiosidade, no dizer gramatical dele. E, para não deixar de graça e ficar de bem comigo e como se já não estivesse desde sempre, presenteou-me com o que os inúteis e preguiçosos odeiam, um livro.

Um livro qualquer? Não. A Relíquia, do colega causídico e jornalista Eça de Queiroz, não porque me tachava de falso beato ou bom hipócrita cristão. Antes, por se arrepiar com meus repetidos testemunhos do amor de Deus por mim, em um rasgo de graça e de mais graça, que me alcançou desenganado pela medicina e adjacências, tomado de infecção generalizada, em coma profundo, no vale da sombra da morte!

Não é que autografou o livro de cabeça para baixo e em sua última página?

Para consertar o imperdoável erro, reproduziu a dedicatória no lugar de costume.

É muita honra para um pobre mortal, rico de sede de conhecimentos e de sabedoria.

Na medida em que lia a romanceada novela, regada a preces, novenas, safadezas, luxúrias e penitências, a débito da Paixão de Cristo, tivemos, depois de mais de duas décadas e meia de amizade e relação cordial, oportunidades únicas de beliscar, pelas bordas, as brechas da razão humana quanto à ausência de capacidade de se fundamentar racionalmente a existência de Deus.

O Mestre que se queria agnóstico cedeu. Aproveite e confira, por suas textuais e coloquiais expressões: “[22:41, …. Marcial: Eu também. Acredito na ciência e na providência divina.]”

Eu não pude resistir ao congresso de ciência e fé na alma daquela privilegiada inteligência de educador por excelência.

Tenha lido o ex-cobrador de tributos Mateus, disso não sei. Contudo tenho de afirmar que a fé nos justifica diante de Deus e as obras nos justificam diante dos homens.

Marcial agiu com foco, força é fé, para ficar na trilogia em voga, esvaziada por seus atores de péssimas performances. Sua passagem na Secretaria da Educação Municipal de Franca é indelével. Priorizou o ensino de qualidade, integrou a comunidade escolar, valorizou o professor e a classe de que tanto tinha orgulho porque a integrava, desde o tempo da lousa e giz e, quem sabe, do jaleco. Confundia-se com ela.

O poder o fez generoso.

Acha que esqueci da Casa de Recuperação de Dependentes Químicos que foi visitar comigo, a pedido meu, de então vereador; o que era e é raro um secretário se permitir, por se colocar, indevidamente, em um posto no qual não está? Lá faltavam alimentos, agasalhos, móveis, medicamentos … Providenciou tudo. Não tive que oficiar uma linha em forma de Indicação ou Requerimento Legislativo.

Dependesse dele, teríamos salvo toda a safra da Educação destas paragens, voltando-o, por empréstimo, ao cargo de Secretário Municipal. Curvou-se aos estatutos do PT, seu partido do coração. Perdemos nós. Ética e fidelidade lhe sustentavam.

Para encurtar a conversa, da qual ele dizia ter saudades ao me aporrinhar naquele 25 de março de 2020, Joelma Ospedal e eu não pensamos duas vezes em convidar Marcial Inácio para assumir uma coluna, o espaço que bem entendesse consentâneo à disseminação da defesa da Escola Pública.

Empolgação total. Essa foi a reação dele ao convite, de pronto aceito e competentemente correspondido com o nosso portal Folha de Franca.

Foi começar a escrever, como se na sala de aula estivesse, para a neoplasia malignamente golpear a sua coluna. Chegou a me telefonar, angustiado, para contar que não estava suportando ficar sentado. Com dores terríveis, como fazer o que amava, falar de educação, transmitindo-a por seus artigos que seriam publicados nesta plataforma virtual pela qual se apaixonara?

Prometera trazer outros lentes para cá. Perdão, comprometera-se no que pôde.

Há menos de dois meses, um mascarado amigo, ao lado de Giovani Dominici, à risca com o protocolo sanitário de enfrentamento da pandemia, impôs aos meus olhos uma imagem derradeira de magreza covardemente rápida. Desconsiderei. Desconversava Marcial com a espera da confirmação de diagnóstico para iniciar o tratamento. Engoli calado. Dali em diante, principiei a por ele orar no anonimato.

Até que, na última quarta-feira, 23, tivemos a penúltima conversa, em que, quebrantando-me, disparou, com voz fraca e articulação atropelada de palavras, que dizia estar inserido em minhas orações, e “que, … Deus, com certeza, vai me tirar dessa … abraço”.

O agnóstico não subsistiu. Abraão creu em Deus, que o declarou como justo.

E foi chamado o amigo de Deus.

Estão a ver, familiares, amigos, correligionários, alunos, leitores e admiradores do Professor Marcial, então, que a pessoa é considerada justa aos olhos de Deus pelo que faz e não só por crer, segundo Tiago, o irmão de Jesus.

Tecão, chamado por Deus, ontem disse: presente. Não mataria essa aula quem tanto fez e já falta nos faz!

Dr. Theo Maia

Advogado Previdenciarista (OAB-SP 16.220); sócio-administrador da Théo Maia Advogados Associados; jornalista; influenciador social; diretor do Portal Notícias de Franca; bacharel em Teologia da Bíblia; servo do Senhor.

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