Opiniões

Educação em casa

Ainda antes das sete da manhã, as crianças foram acordadas para o primeiro dia de aula na roça. Dois meninos e uma menina, entre sete e oito anos, oriundos de famílias vizinhas de uma mesma colônia. Os pais, analfabetos, não entenderam muito bem a imposição do patrão, mas acharam interessante as crianças aprenderem a ler, uma habilidade que a eles fazia falta. A escola fora instalada na fazenda próxima, a mais ou menos dois quilômetros e meio. Caminharam pela estrada com piso de areais ainda úmidas de orvalho, ladeando a mata nativa que então dominava boa parte das propriedades. Dona Tereza aguardava na porteira, recebeu-as com um sorriso e logo as conduziu a um barracão de ordenha, recém-preparado com duas mesas compridas e dois bancos igualmente longos para as funções do ensino. Um biombo de madeira cumpriria as funções de lousa. No telhado, alguns pombos arrulhavam, estranhando o movimento tardio no estábulo, após a ordenha do dia…

Esses fatos se deram no Município de Cássia, no início dos anos 1960, numa típica fazenda de café de Minas Gerais. Era a implementação de um projeto de ensino rural, proposto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação da época – a Lei Federal 4.024, de 20.12.1961, que procurando seguir orientações da Unesco impunha aos Estados implementar o ensino rural, ainda que com um único professor para as várias etapas. Nessa época também era obrigatória a matrícula dos filhos na escola primária. Naturalmente porque a maioria da população brasileira era analfabeta e se entendia não ser razoável deixar a educação das crianças por conta e critérios dos pais.

O tempo foi passando e as escolas rurais ganharam meio de transporte. Todas as escolas públicas passaram a ter merenda, instituiu-se até um crime o de “abandono intelectual” para os pais que deixassem de matricular crianças na escola. Desde então já estava também em voga o jeitinho brasileiro de resolver problemas. Era comum ver salas de aula, galpões, barracões, com alunos da primeira à terceira série primárias. A orientação da Unesco fora no sentido de se aproveitar o mesmo professor para todas as séries do ensino primário, caso fosse necessário… Mas não no mesmo espaço!

Mas como as idas e vindas na escala da evolução humana parece algo sério e recorrente, recentemente ressurgiu na Câmara dos Deputados do Brasil um projeto lei de 2012 que propunha facultar o ensino domiciliar aos pais brasileiros. Como parecia algo bizarro, foi alvo de muita crítica e ficou esquecido, até ressurgir, encampado pelos deputados que apoiam o governo atual, como o Projeto de Lei 2401/2019. O primeiro passo dos novos apoiadores da ideia do ensino domiciliar foi apresentar outro projeto para extinguir o crime de abandono intelectual. O debate das matérias segue firme na comissão especial criada para estudar as implicações que a mudança de orientação representará em várias áreas da sociedade: a dos Direitos Humanos, das Minorias, da Seguridade Social, da Família, das Finanças e da Tributação. Órgãos de comunicação sérios têm denunciado fundamentalismo religioso, ideologia e interesses econômicos por trás da proposta velha com nome novo e chique de homeschooling, copiada de alguns estados norte-americanos mais conservadores. O objetivo das mudanças é implementar “o direito dos pais de educar os filhos”.

Sobre a educação, a atual Constituição Federal do Brasil dispõe, no entanto:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Fácil de ver que a educação de crianças não é apenas um direito dos pais… Considerando que o analfabetismo atinge aproximadamente 10% da população das cidades e 30% da população rural do País, no mundo tecnológico de hoje não perece boa ideia deixar exclusivamente a critério dos pais educar as crianças. Os maiores percentuais de analfabetos coincidem com as classes mais pobres. A educação é a melhor forma de libertar o cidadão das dificuldades da vida, de lhe dar um pouco de dignidade. Naturalmente, pessoas analfabetas são conduzidas, não são autoras da própria história. Não é justo que aos pais acorrentados à ignorância e à pobreza seja facultado moldar destinos iguais para os seus filhos e que a sociedade continue a se omitir, como se esse destino miserável fosse apenas questão de sorte.

Não é nova a ideia de que conhecimento liberta. Nem foi Paulo Freire, bastante criticado pelo Ministro da Educação, e que dela se valeu na sua clássica pedagogia da libertação, que a descobriu. Aliás, o próprio Presidente da República vive repetindo em seus discursos o ensinamento de Jesus, segundo o Evangelho de São João, (8:32) de que: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A lição é atemporal e vale também para a questão em debate. A verdade sobre como funciona a vida tecnológica de hoje é capaz de libertar milhões da miséria e dos grilhões impostos pela ignorância. Enfim, precisamos de uma política pública de educação séria, implantada por técnicos que efetivamente queiram ajudar as classes mais pobres do Brasil.

Dr. José Borges

Advogado (Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca); especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito Ambiental. Foi Procurador do Estado de São Paulo de 1989 a 2016 e Secretário de Negócios Jurídicos do Município de Franca. É membro da Academia Francana de Letras.

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