Opiniões

O Estado de Direito

Num momento singular no Brasil em matéria de insubordinação ao Estado de Direito, em que parte da sociedade parece tolerar injustificados ataques à estrutura do Poder Estatal, é interessante refletirmos sobre como a sociedade chegou até aqui. Discutir os problemas da sociedade e as suas regras de convivência vigentes é natural de regimes democráticos. Mas o que tem havido no Brasil atualmente é que, com esse intuito, muitos despautérios têm sido ditos por pessoas comuns, por políticos e até por jornalistas, tais como: “está havendo uma ditadura do Supremo Tribunal Federal no Brasil”, ou que “o povo precisa se armar para proteger a sua liberdade” … E não tem faltado quem proponha fechar o Supremo Tribunal Federal e com ele o Judiciário e, naturalmente o Congresso Nacional e com ele o Legislativo, mantendo-se apenas o Poder Executivo.

Não custa recordar que Estado de Direito é o regime em que a sociedade é governada com base em regras previamente escolhidas pelo povo, através de seus representantes, para não haver riscos de que governantes atuem segundo os seus caprichos, interesses e valores pessoais… Ou seja, no Estado de Direito, a vida das pessoas e os governos são regulados por leis. Surgiu na Idade Média, com o objetivo de limitar o absolutismo e proteger a sociedade de governantes totalitários. Portanto, as propostas de abolir o Estado de Direito nos dias atuais parece uma atitude irrefletida, para ser brando com os que a defendem, possivelmente até sem saber que o fazem. Há grandes riscos para a liberdade dos cidadãos comuns nos regimes totalitários. E não há qualquer vantagem em retroceder a essa altura da história.

E mais absurdo é ver, como tenho visto, até colegas advogados defendendo a volta do regime militar ditatorial! Ora, para que serve um advogado onde não há judiciário? Devemos respeitar profundamente as convicções políticas das pessoas, não há dúvidas. Mas, penso que quando claramente estão agindo de modo irrefletido, temos o dever de alertá-las. E há mais: vimos parlamentares eufóricos fazendo isso na última quarta-feira no Palácio do Planalto, nas comemorações da graça concedida ao deputado Daniel Silveira, condenado por promover atos atentatórios contra a democracia e o Estado de Direito, ao propor a volta do AI-5. Ora, sem o Poder Judiciário em funcionamento nós, advogados, vamos pleitear direitos de clientes para quem? Naturalmente o regime ditatorial proposto por Daniel Silveira tiraria até a sua própria função legislativa. Parece absurdo que ele não tenha pensado nisso.

Mesmo com as instituições em funcionamento, temos visto uma série de desastres acontecendo no País, simplesmente pelas sinalizações feitas pelo Poder Executivo, com o seu grande poder de persuasão. As questões ambiental e indígena, que não são prioridades do Poder Executivo Federal atual, têm os piores indicadores da última década. A rigor, desde que o presidente Michel Temer propôs ao Congresso, em 2016, autorizar a mineração em terras indígenas e nas áreas de proteção ambiental, inclusive na reserva do Jamanxim, no Pará, uma área de maior biodiversidade da Amazônia, o garimpo ilegal invadiu de vez a floresta. Depois disso, todos sabemos o resto: o Brasil tornou-se o campeão mundial de desmatamentos de florestas tropicais. E estamos assistindo um verdadeiro massacre dos povos originários do país enquanto o governo federal faz de conta que não está vendo.

Os regimes de liberdade funcionam muito mais como regimes de boa-fé do que de imposições legais. Portanto, é dever de todos cuidarmos para que sejam mantidos os seus parâmetros. O Poder Judiciário, cuja função é interpretar as leis e aplicar o Direito (que é um pouco mais do que cumprir a lei), funciona como um freio para os dois outros Poderes. O Poder Legislativo edita leis e até modifica a Constituição para atualizar as regras sociais. O Poder Executivo, além de ser o detentor do maior poder do Estado, o orçamento, tem ainda competências exclusivas para propor leis, o que equilibra a balança dos Poderes do Estado.

Enfim, os Poderes Legislativo e Judiciário são, no estado moderno, pouco mais do que coadjuvantes do Poder Executivo. Logo, falar-se em ditadura de qualquer deles, que não tem a seu serviço as Forças Armadas nem o orçamento, é de uma ingenuidade absoluta.

Dr. José Borges

Advogado (Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca); especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito Ambiental. Foi Procurador do Estado de São Paulo de 1989 a 2016 e Secretário de Negócios Jurídicos do Município de Franca. É membro da Academia Francana de Letras.

Um Comentário

  1. Sim! Que situação, hein? Muito esclarecedor o seu texto. Espero que atinja aos que, gentilmente o Sr. chama de ingênuos, porque, escolher representantes, nota-se hoje, é uma coisa sérissima! Está aí a guerra monstruosa acontecendo como jamais sonhamos ou gostaríamos de ver, Parabéns! O Sr. falou tudo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Artigos relacionados

Verifique também
Fechar
Botão Voltar ao topo